A teoria da justiça de Rawls
Introdução
O que é uma sociedade justa? Essa é uma questão fundamental da filosofia política. Filósofos importantes como Platão, Locke, Rousseau e Kant dedicaram livros a esse tema. Essa questão também possui uma importância prática, uma vez que as políticas adotadas por uma sociedade estão relacionadas ao que seus membros pensam ser justo ou injusto. Uma forma de perceber como isso é verdade é notando que ideologias políticas opostas têm concepções de justiça diferentes. Tome, por exemplo, o liberalismo, o socialismo, o conservadorismo ou fascismo, cada uma responde diferente a pergunta “o que é uma sociedade justa?”.
A teoria da justiça de John Rawls (1921—2002) procura oferecer uma resposta para essa pergunta. Em um livro publicado em 1971 chamado Uma teoria da justiça o filósofo elaborou uma concepção muito influente sobre a justiça. Mas talvez mais importante que sua teoria seja o procedimento que usou para chegar até ela.
Em busca da imparcialidade
O ponto de partida da teoria da justiça de Rawls é o seguinte problema: como evitar que nossas ideias sobre justiça sejam influenciadas por nossa posição social? Muitas vezes, em questões relativas à distribuição de bens sociais como a riqueza, as pessoas têm suas opiniões contaminadas por sua posição social, condição econômica e outras desigualdades individuais.
Por exemplo, um homem muito rico pode julgar injusto que o Estado cobre um imposto elevado dos mais ricos e pequeno dos mais pobres. Ao contrário, pensará que o justo é cobrar o mesmo valor de todos. Assim, o que entendemos por justo ou injusto não parece ser uma verdade objetiva, mas apenas a expressão de um desejo individual, ou seja, o desejo de não ser prejudicado com impostos elevados.
Para evitar que nossas ideias sobre justiça sejam influenciadas por nossa condição social, Rawls acredita que devemos ser imparciais. Essa é uma expressão do direito. Quando o juiz diz que o réu é culpado ou inocente com base mais na cor da sua pele ou condição econômica do que nas evidências disponíveis, dizemos que ele não foi imparcial. Isso é um problema grave, já que torna a decisão injusta. Não devemos condenar alguém porque é negro, branco, judeu, pobre ou rico. O ideal é que o juiz conduza o processo e tome sua decisão sem se deixar levar por essas características pessoais.
Portanto, no direito, justiça significa, em parte, uma decisão imparcial. Rawls também adota essa ideia como um ideal. Ou seja, para o filósofo, uma sociedade justa é aquela que escolheríamos ao decidir como um juiz, de forma imparcial.
O véu de ignorância
Como decidir de forma imparcial? Uma das representações mais comuns da justiça é a imagem da deusa Têmis com uma venda nos olhos e uma balança nas mãos. A balança com os pratos na mesma posição simboliza a igualdade no julgamento e na atribuição de punições. Já a venda, representa a imparcialidade da justiça.
A venda impede que a justiça de atenção para características individuais, como raça, classe social ou gênero, de modo que trata todas as pessoas com imparcialidade. Rawls defende que, ao pensarmos o que é uma sociedade justa, deveríamos fazer o mesmo, nos imaginado por trás do que chamou de véu de ignorância. Assim seríamos capazes de pensar com imparcialidade.
O conceito de véu de ignorância é um dos mais importantes na teoria da justiça de Rawls. É ele que possibilita que pensemos de maneira imparcial. Podemos imaginar esse véu como uma venda que, ao invés de impedir que enxerguemos o que está em nossa frente, impede que saibamos quem somos. Ou seja, a partir do momento em que nos imaginamos com um véu de ignorância, já não sabemos se somos negros ou brancos, ricos ou pobres, homens ou mulheres, quais nossas habilidades naturais etc. Não conhecemos qualquer característica que nos diferencie dos outros.
Rawls pensa que se uma pessoa ignora suas características individuais, será imparcial, pois terá que pensar em si considerando que pode ser várias pessoas diferentes. Faça esse experimento mental de se imaginar por trás de um véu de ignorância. Imagine que você não sabe quem é exatamente, mas sabe que vive numa sociedade plural. Imagine por um instante que é possível que seja homem, mulher, negro, branco, pardo, indígena, judeu, heterossexual, homossexual, transexual, rico, pobre, classe média, enfim, se imagine na pele de diferentes pessoas. Por fim, tente escolher o que seria justo pensado no que é melhor para si, considerando que está por trás de um véu de ignorância.
Posição original
Rawls foi influenciado por um grupo de filósofos chamados de contratualistas. Os contratualistas acreditavam que as leis de uma sociedade são legítimas e justas apenas se todas as pessoas puderem aceitar. Em outras palavras, ninguém tem obrigação de respeitar uma lei com a qual não poderia concordar.
Rawls acredita que uma sociedade justa é aquela adota leis que foram escolhidas de forma imparcial e com as quais todas as pessoas poderiam concordar. Para identificar quais são essas leis, ele pede que nos imaginemos no que chama de posição original fazendo um contrato social. A posição original é uma situação hipotética na qual não existe uma sociedade formada e temos que escolher, em conjunto com outras pessoas, quais serão as leis básicas da sociedade que iremos criar. Ou seja, temos que fazer um contrato social: chegar a um acordo sobre os princípios básicos dessa sociedade, incluindo quais direitos e deveres as pessoas terão, como será distribuída a riqueza e como será o governo.
Rawls pensa que esse contrato social deve ser feito por trás de um véu de ignorância, para que ele seja imparcial. Isso quer dizer, como já vimos, que as pessoas na posição original não sabem qual seu gênero, classe, raça, religião etc.
O que defende a teoria da justiça de Rawls
No início do texto, dissemos que talvez a parte mais importante da teoria da justiça de Rawls seja o procedimento que propõe para identificarmos o que é uma sociedade justa. O filósofo parte do problema que nem sempre somos imparciais ao pensarmos o que é justo ou injusto. A partir disso, propõe um procedimento que deve ser seguido para chegarmos a um resultado justo.
Que tipo de sociedade escolheríamos se seguíssemos o procedimento proposto por Rawls? Sua resposta é uma sociedade na qual
- uma série de liberdades fosse garantidas para todos;
- houvesse igualdade equitativa de oportunidades;
- a riqueza fosse distribuída de acordo com o princípio da diferença.
Princípio da liberdade
Suponha novamente que você está na posição original. Lembrando que, nessa situação, você
- deseja fazer um contrato social e estabelecer as leis básicas na sociedade;
- deve escolher a melhor sociedade possível para você;
- porém está sob um véu de ignorância e não sabe exatamente que é;
- sabe apenas que é um ser humano e que a sociedade que irá criar é plural, tem indivíduos com ideias, crenças, desejos diversos.
Nessa situação, qual das regras abaixo escolheria:
- uma lei que garanta a liberdade religiosa, ou seja, que todas as pessoas poderão escolher seguir ou não qualquer religião, sem ser prejudicadas ou beneficiadas por isso;
- uma lei que permita a liberdade religiosa, mas que reserve os cargos públicos à pessoas de alguma religião cristã;
- uma lei que obrigue todas as pessoas a adotar uma religião específica.
Entre essas opções, qual você escolheria na posição original? De acordo com Rawls, escolheríamos a primeira lei. Essa é a melhor opção. A segunda opção é interessante para uma pessoa cristã. Se ela não estivesse com o véu de ignorância, teria vantagem em escolhe-la. Afinal, seria mais fácil conquistar cargos públicos com uma concorrência menor. Porém, como está com um véu de ignorância, não é capaz de saber se é ou não cristã. Escolhendo essa lei, corre o risco de concordar com uma regra que irá prejudicá-la.
De acordo com Rawls, se seguirmos esse mesmo raciocínio em relação à temas como liberdade de opinião e expressão, direito à vida, a um julgamento justo etc., concluiremos que o melhor é escolher leis que garantam a mais ampla liberdade possível.
Nas palavras de Rawls, a primeira e mais importante lei adotada para a sociedade seria
“cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos.”
Princípio da diferença
Um aspecto muito importante em uma sociedade justa é a forma como a riqueza é distribuída. De acordo com Rawls, na posição original as pessoas adotariam o que chama de princípio da diferença para regular isso. Assim, o filósofo acredita que na posição original não seria escolhido uma distribuição igualitária de riqueza. A desigualdade é mais justa, dentro de certas condições.
De acordo com esse princípio,
“as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade.”
Para o benefício dos menos favorecidos
A teoria da justiça de Rawls afirma que a diferença de riqueza só é justa na medida em que beneficie os menos favorecidos. Ou seja, não é igualitária nesse aspecto, já que aceita a desigualdade, mas dentro de certas condições. Quais são essas condições?
Imagine uma sociedade totalmente igualitária. Essa não é uma sociedade muito inovadora e dedicada à produção, pensa Rawls, porque as pessoas não têm tanto incentivo para trabalhar. Por que alguém se preocuparia, por exemplo, em criar uma nova tecnologia se não irá ganhar com isso nada além do que já ganha? Portanto, pensa o autor, se permitir a desigualdade contribuir para aumentar a riqueza, haveria mais riqueza para ser distribuída e mesmo os não tão favorecidos sairiam ganhando. Sendo assim, de acordo com o principio da diferença, um pouco de desigualdade seria justa.
Por que as pessoas na posição original iriam escolher o princípio da diferença? Não seria mais sensato escolher uma distribuição igualitária? Rawls acredita que não, porque mesmo as pessoas menos favorecidas seriam beneficiadas pela desigualdade.
Igualdade equitativa de oportunidades
Por fim, Rawls acredita que, numa sociedade justa, a desigualdade deve ser relacionada a cargos que qualquer pessoa possa acessar em condição de igualdade equitativa de oportunidades.
Isso quer dizer, em primeiro lugar, que as profissões são acessíveis a qualquer pessoa. Ninguém é proibido, por exemplo, de ser médico ou professor com base em sua raça, gênero, religião. Desde que qualificada para exercer a função, uma pessoa pode se candidatar a qualquer profissão.
Em segundo lugar, quer dizer que deve haver uma igualdade real de oportunidades, não apenas formal. Sabemos que a educação que uma pessoa recebe e outros fatores influenciam nas oportunidades que terá na vida. Assim, para que exista realmente igualdade de oportunidades, todos devem ter acesso à educação com a mesma qualidade e até mesmo coisas mais básicas, como alimentação e saúde.
Conclusão
O objetivo da teoria da justiça de Rawls era oferecer uma resposta à questão “o que é uma sociedade justa?” que fosse, como vimos, imparcial. Depois de conhecer o procedimento que Rawls propôs para refletirmos sobre justiça e quais seriam as leis adotadas na posição original, podemos ter uma visão geral de sua teoria.
Em resumo, podemos dizer que a teoria da justiça de Rawls defende que uma sociedade justa
- é aquela que garante uma série de liberdades básicas, iguais para todos;
- que permite a desigualdade, mas apenas na medida em que esta beneficie os menos favorecidos e na condição de que exista igualdade real de oportunidade.
Rawls acredita que essa é uma sociedade justa porque seria a escolhida na posição original. Ou seja, ela é justa porque qualquer pessoa, ao refletir de forma imparcial sobre o que é a justiça, optaria por essa sociedade e não outra.
Referências e saber mais
Para conhecer mais sobre a teoria da justiça de Rawls, há um livro introdutório do professor Nythamar de Oliveira, intitulado Rawls, que será útil. Ele tem pouco mais de 60 páginas e a linguagem é acessível. Há também o livro principal de Ralws, Uma teoria da justiça, mas esse é bem complexo e tem mais de 800 páginas. Caso deseje conhecer mais sobre teorias da justiça, veja outros artigos no site sobre o tema aqui.
- John Rawls. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
- Nythamar de Oliveira. Rawls. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.